Há um projeto de lei que objetiva mudar as leis que regulamentam o mercado dos planos de saúde privados, e os autores de tal proposta estão contando com a simpatia do governo ao tema para aprová-lo. No entanto, infelizmente, tal projeto não visa ajudar os consumidores, mas, sim, a saúde financeira das operadoras, pois tem, entre outros pontos, a facilidade para reajustar os contratos por faixa etária, eliminar os prazos máximos de espera por consultas e exames e, além disso, permite que o Conselho de Saúde Suplementar (Consu), um órgão político, revise e altere as decisões da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é um órgão técnico e independente.
Outro ponto de tal projeto de lei é que iria para o Consu a prerrogativa de decidir os reajustes de planos individuais e familiares, baseando-se em notas técnicas das operadoras (artigos 85 e 46), e não nos critérios da ANS, além do poder de determinar o rol mínimo de procedimentos obrigatórios que as operadoras devem oferecer.
Um dos pontos mais graves em tal projeto de lei é a questão da multa por falta de atendimento pela operadora. Hoje, basta uma recusa no atendimento para que se abra a possibilidade de aplicação de multa às operadoras. Com essa nova proposta, no entanto, a operadora só seria multada se atingisse um grupo de pessoas. Seria necessário, portanto, atingir a coletividade para que a penalidade pudesse ser aplicada, e o teto de tal multa não passaria de R$ 1,5 milhão. E isso é muito grave, pois, no Brasil, a lei só é obedecida, muitas vezes, quando há uma dura penalidade atrelada.
É importante entender que, se hoje, com a legislação como está, os conflitos, as negativas de atendimentos e ações judiciais são imensos, levando o consumidor, muitas vezes, a uma verdadeira via crúcis para ter o direito de receber o tratamento, se essa lei for aprovada, o consumidor será imensamente prejudicado. Em muitos casos preferirá cancelar o seu plano de saúde particular, sobrecarregando o SUS, que já está sobrecarregado, especialmente por causa do desemprego que fez com que milhões de pessoas perdessem também os seus planos de saúde oriundos dos contratos de trabalho.
A ANS é a agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde responsável pelo setor de planos de saúde no Brasil, foi criada pela Lei 9.961 de 2000 e tem como função principal promover a defesa do interesse público na assistência privada à saúde, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país. É o órgão responsável pela regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades relativas à assistência privada à saúde.
Entre suas competências estão a fiscalização da atuação das operadoras (empresas) de planos de saúde e do cumprimento da lei; regulação da relação das operadoras com os prestadores de serviço (médicos, laboratórios e hospitais) e consumidores; “detalhar” (normatizar) aspectos da Lei de Planos de Saúde, quando necessário e permitido; autorizar reajustes das mensalidades dos planos individuais e familiares; entre outras atribuições descritas em lei.
Fundamental destacar que as resoluções normativas, por estarem em um degrau inferior às leis, devem respeitar a Lei de Planos de Saúde, o Código de Defesa do Consumidor e, é claro, a Constituição Federal, por uma questão de hierarquia de normas. Toda e qualquer resolução normativa que desrespeitar uma lei é considerada ilegal e pode ser questionada no Poder Judiciário.
O Consu foi totalmente esvaziado há 18 anos, depois de criada a ANS, no entanto, em 2018, foi reativado, ficando sob a responsabilidade da Casa Civil, podendo propor políticas, rever decisões já tomadas, deliberar sobre as novas regras de franquia e coparticipação.
O grande problema da reativação de tal conselho é que, como explicado acima, ele é um órgão político que contará com a pressão do setor que tem o capital necessário para, inclusive, viajar sempre à Brasília para conversar diretamente com seus membros, ao contrário dos órgãos de defesa do consumidor, que possuem verba limitada.
A ANS, que tem em seu regimento o princípio da autonomia para tomar decisões técnicas em sua respectiva área de atuação, seria suplantada por decisões de um órgão formado por pessoas que não conhecem a fundo o setor e que possuem interesses políticos. Fato é que o último a ser beneficiado seria o consumidor. É preciso lembrar que o setor já vive um caos, tanto é que a judicialização da saúde aumentou mais de 130% nos últimos anos, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça. E isso ocorre porque a palavra de ordem das operadoras de planos de saúde é o “não”, mesmo que haja legislação específica ou inúmeras decisões favoráveis ao consumidor no Judiciário, pois elas contam com a inércia do consumidor. Sem dúvida, muitas pessoas preferem o “não” a ter que percorrer o caminho mais complexo de uma ação judicial para obter um “sim”, mesmo que essa obrigatoriedade de custeio do tratamento ou procedimento já exista, pois consta na legislação.
A relação entre os consumidores usuários de planos de saúde privados é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei 9.656/98. Aliás, é justamente por causa da Lei dos Planos de Saúde e pela criação da ANS que o mercado, de forma mágica, praticamente parou de oferecer os planos individuais e familiares aos consumidores, uma vez que a ANS somente pode determinar os índices de reajustes anuais para esses planos. Para os planos por adesão ou empresariais, que representam 80% do mercado, a ANS pode apenas homologar o índice apresentado pela operadora. Em 2019, o índice determinado pela ANS para os planos individuais fora de 7,35%, e o índice dos planos coletivos fora o triplo. Assim, se o índice da ANS já á alto e impacta o orçamento das famílias, que não tiveram o mesmo percentual de aumento em seus salários e aposentadorias, o que dirá dos planos coletivos.
O que acontecerá é o que já vem ocorrendo: as operadoras têm visto o alto número de cancelamentos de contratos, pois as pessoas não possuem a menor condição de pagar R$ 4 mil, R$ 5 mil, R$ 6 mil de mensalidade de plano de saúde e ainda suportar índices de aumentos na casa dos 20%, 30% ou 40%, além dos índices de aumento por mudança de faixa etária. É preciso lembrar que, mais do que um negócio com o objetivo de lucro, esses contratos precisam respeitar a função social do contrato, pois estão diretamente relacionados com o bem mais precioso do ser humano, a sua vida. Recentemente, uma das maiores operadoras do país recebeu uma ordem de seus gestores para reformular contratos, atendimentos e tudo mais que fora possível, pois estava “lucrando pouco”. Ou seja, a reformulação não é para conter possíveis prejuízos, mas para obter maiores lucros.
O grande problema desse objetivo (maior lucro) é pensar onde serão reduzidos os custos. Na qualidade do atendimento, na qualidade dos materiais empregados nas cirurgias, na contratação de mão de obra especializada? Em 2016, por exemplo, o lucro das operadoras, de acordo com a ANS, foi de 70%. Em 2018, com o elevado desemprego, o número de pessoas que cancelaram seus contratos de plano de saúde ultrapassou a marca de 60 mil e, mesmo assim, as empresas lucraram.
Ou seja, essa conta, muito em breve, não vai fechar, ainda mais se essa proposta de projeto de lei, que retira importantes direitos dos consumidores e dá maior autonomia para o setor fazer o que achar melhor, for aprovada. É preciso lembrar que, como discursado pelo ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy, consumidores somos todos nós. Assim, atitudes que prejudicam os consumidores prejudicam toda a coletividade, ainda mais quando falamos em saúde e vida, que, uma vez perdida, não há como ser recuperada.